Dei comigo a relembrar épocas esfumadas do passado, das memórias de leituras juvenis, feitas dentro daquilo que era padrão do ensino liceal, que convocava escritores portugueses dos séc. XIX e XX, a outras relacionadas com a vertente espiritual, até chegar ao consumo da chamada literatura romântica.
Em casa de minha avó paterna, que não escrevia com desassombro, mas que conseguia ler razoavelmente, havia uma despensa, onde no meio das utilidades, e de bastante tralha, se enfileirava uma mancha azul de livros, que era alvo de cobiça feminina e que ela generosamente partilhava, estimulando a leitura.
Max du Veuzit, que assinava a criação nas capas, todas iguais e azuis, e que foram uma referência de época, a coberto do pseudónimo masculino, escondia uma personagem de mistério, que produzia ficção do agrado de adolescentes como de suas avós.
De seu nome Alphonsine Simonet, nascida nos finais do séc. XIX em França, curiosamente falecida no ano do meu nascimento, avançou por diversos géneros literários, da poesia ao teatro, à novela, à escrita em jornais, até alcançar o sucesso, que lhe abriria a porta para a produção de inúmeros romances, traduzidos em várias línguas, de que Portugal teve 60 títulos.
A razão do seu sucesso, deveu-se à narrativa de histórias simples com finais felizes, sabendo explorar muito bem a oportunidade potenciada, num clima propenso ao afecto, entre as duas guerras acontecidas na Europa, que a par da América despertaram ou coincidiram com a valorização da mulher.
De resto, toda essa escrita da denominada colecção azul, era a transposição dos contos de fadas, entretendo-se a efabular das ligações amorosas entre a burguesia e a fidalguia, mas no mais puro respeito, onde só existiam os contactos de mãos, a intensidade de um olhar de alma, ou uma carícia no ombro, coisas que embora emocionalmente pueris, alvoroçavam um amplo leque geracional, circunscrito num mundo de cortinas cerradas, de horizontes velados por temores, resultantes de uma vida social doméstica, apertada e lusitana, enquadrada numa moral rígida de costumes sob a tutela de uma religião repressiva, e uma vivência sócio-política, que não permitia extravagâncias fora do formato convencional.
Fui à estante da casa adormecida de meus pais, e lá encontrei o “John Chauffer russo” cuja edição encadernada, adivinhadamente fruto do excessivo manuseamento de dedos carentes de outrora, era uma espécie de baluarte romanesco do amor entre um príncipe loiro, amável e superiormente culto, forçado a deixar a Rússia em consequência da revolução bolchevique, e de uma caprichosa herdeira milionária emergente da era industrial. A narrativa desenrola-se em Paris, verdadeiramente o imaginário do centro do mundo, de avenidas rasgadas, com mansões junto de bosques acolhedores, onde se cruzavam culturas e gentes de poder e influências várias e onde se respirava uma velada, mas motivadora liberdade, sem contudo se aprofundar ou questionar valores, ou avançar para uma crítica social.
O ponto luminoso da história é aquele par, de cujo relacionamento se transformou num amor resistente a tudo e a todas as adversidades, formado pela menina rica e o seu elegante chauffer, que sendo príncipe, perante uma situação económica modesta, aceitou trabalhar sem ressentimentos, de forma a conseguir terminar com êxito a sua formação universitária.
É uma descrição ingénua, destinada a fazer valer essa mágica que toda a gente ambiciona possuir. Uma paixão e uma vida com enamoramento e felicidade.
Hoje relembro esta réstia de azul, esse poder inacessível, mas sempre eterno, terminando com a poesia de Mário de Sá Carneiro:
“Um pouco mais de sol - e fora brasa
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa
Se ao menos eu permanecesse aquém…”
2 de Fevereiro de 2011
Maria das Mercês Coelho
Em casa de minha avó paterna, que não escrevia com desassombro, mas que conseguia ler razoavelmente, havia uma despensa, onde no meio das utilidades, e de bastante tralha, se enfileirava uma mancha azul de livros, que era alvo de cobiça feminina e que ela generosamente partilhava, estimulando a leitura.
Max du Veuzit, que assinava a criação nas capas, todas iguais e azuis, e que foram uma referência de época, a coberto do pseudónimo masculino, escondia uma personagem de mistério, que produzia ficção do agrado de adolescentes como de suas avós.
De seu nome Alphonsine Simonet, nascida nos finais do séc. XIX em França, curiosamente falecida no ano do meu nascimento, avançou por diversos géneros literários, da poesia ao teatro, à novela, à escrita em jornais, até alcançar o sucesso, que lhe abriria a porta para a produção de inúmeros romances, traduzidos em várias línguas, de que Portugal teve 60 títulos.
A razão do seu sucesso, deveu-se à narrativa de histórias simples com finais felizes, sabendo explorar muito bem a oportunidade potenciada, num clima propenso ao afecto, entre as duas guerras acontecidas na Europa, que a par da América despertaram ou coincidiram com a valorização da mulher.
De resto, toda essa escrita da denominada colecção azul, era a transposição dos contos de fadas, entretendo-se a efabular das ligações amorosas entre a burguesia e a fidalguia, mas no mais puro respeito, onde só existiam os contactos de mãos, a intensidade de um olhar de alma, ou uma carícia no ombro, coisas que embora emocionalmente pueris, alvoroçavam um amplo leque geracional, circunscrito num mundo de cortinas cerradas, de horizontes velados por temores, resultantes de uma vida social doméstica, apertada e lusitana, enquadrada numa moral rígida de costumes sob a tutela de uma religião repressiva, e uma vivência sócio-política, que não permitia extravagâncias fora do formato convencional.
Fui à estante da casa adormecida de meus pais, e lá encontrei o “John Chauffer russo” cuja edição encadernada, adivinhadamente fruto do excessivo manuseamento de dedos carentes de outrora, era uma espécie de baluarte romanesco do amor entre um príncipe loiro, amável e superiormente culto, forçado a deixar a Rússia em consequência da revolução bolchevique, e de uma caprichosa herdeira milionária emergente da era industrial. A narrativa desenrola-se em Paris, verdadeiramente o imaginário do centro do mundo, de avenidas rasgadas, com mansões junto de bosques acolhedores, onde se cruzavam culturas e gentes de poder e influências várias e onde se respirava uma velada, mas motivadora liberdade, sem contudo se aprofundar ou questionar valores, ou avançar para uma crítica social.
O ponto luminoso da história é aquele par, de cujo relacionamento se transformou num amor resistente a tudo e a todas as adversidades, formado pela menina rica e o seu elegante chauffer, que sendo príncipe, perante uma situação económica modesta, aceitou trabalhar sem ressentimentos, de forma a conseguir terminar com êxito a sua formação universitária.
É uma descrição ingénua, destinada a fazer valer essa mágica que toda a gente ambiciona possuir. Uma paixão e uma vida com enamoramento e felicidade.
Hoje relembro esta réstia de azul, esse poder inacessível, mas sempre eterno, terminando com a poesia de Mário de Sá Carneiro:
“Um pouco mais de sol - e fora brasa
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa
Se ao menos eu permanecesse aquém…”
2 de Fevereiro de 2011
Maria das Mercês Coelho